Acho que isto merece divulgaçäo, por isso o proponho a publicaçäo no vosso blog. Obrigada! Marta aci
Música interessante, legendada em português: http://www.youtube.com/watch?v=5foecye1o00&mode=related&search
Um correio que a minha irmä escreveu aos meus primos depois de uma conversa de café sobre o referendo do aborto (todos a favor menos ela).
Queridos primos,
Não sei como hei-de dizer tudo o que quero dizer-vos, mas cá vai a minha fraca tentativa. São 6:07 da tarde de Sábado e eu acabei de chegar a Esposende, onde vim tomar banho e trocar de roupa para ir à festa de uma minha amiga. Ainda queria passar pela Eros para me maquilhar e para escolher uma prenda e depois às 7:00 convém que vá fazer a hora de jantar da minha empregada da parafarmácia. O meu jantar é às 8:30. Digo isto para que vocês saibam que me pesa imenso o factor “realidade”. Portanto, não estou a viver um momento filosófico, nem romântico, nem sentimentalista. No entanto, à vinda para Esposende, vim a chorar como uma Madalena arrependida. Convém lembrar que eu nunca choro. E que também não estou com disposição diferente daquela com que me deixaram há pouco. Estou como vocês me viram, ou seja, bem. Mas meti-me no carro e pus o CD da Aretha Franklin e ao ver o lindo fim de tarde que estava desatei num choro compulsivo. Porquê? Por todos os amantes da Natureza, por todos os rapazes que têm um sorriso lindo, por todas as mulheres que se apaixonam e vivem momentos maravilhosos alguma vez na vida, mas que não chegaram a nascer e que, portanto, não chegaram a ver fins de tarde bonitos, nem a rir-se com os amigos, nem se sentiram transportados para o céu quando se apaixonaram. Iam ser pobres, se tivessem nascido? Os pobres, os miúdos dos orfanatos não se apaixonam nem riem e não gostam de apanhar sol? Lembram-se daquela cena do filme “A Vida é Bela” (sim, porque a Vida É Bela!) em que os convidados do casamento se indignam por causa da dificuldade de cálculo exigida a crianças alemãs de poucos anos em contarem ?Quantos judeus sobram de um grupo de 7 se matarmos 3?? É de rir, é de chorar. A pobreza nesta discussão é a parte acessória, assim como a dificuldade aritmética.
Ouvir Aretha Franklin? não sei, lembrei-me dos pretos (dos negros, que é mais poético) e das suas lutas pela liberdade. Se eu vivesse nessa altura, do fascismo ou da escravatura, imagino-me sempre a ser rica, a ser da parte dos “maus”, mas “boazinha”, tipo, ía olhar para os pretos e para os judeus e ver que “oh pá!, eles até são seres humanos!” e que ía ter imensa pena e que não os matava. Mas eu não quero ficar do lado errado da História. Eu queria ser dos que lutam pelos direitos dos homens, eu queria ser grandiosa. Não pelos pretos, não pelos judeus. Por mim! Queria ser dos que lutam pelos direitos dos homens porque são essas as pessoas que têm as cordas do coração mais afinadas, tão esticadas que até doem. Não queria ficar do lado dos que mais ou menos acabam por não fazer mal nenhum. Hoje ao vir para Esposende, ao ver o fim da tarde (não o pôr-do-sol que é piroso) e ao ouvir a preta a cantar um “soul so chic, so cool”, comovi-me. Chorei pelos miúdos que não nasceram, mas muito mais pelos que nasceram, mas ficaram zombies, mornos.
Eu sei que os miúdos dos orfanatos são problemáticos, sei que sofrem horrivelmente, que são revoltados, que a pobreza e a solidão dói mais do que eu posso imaginar. Mas também sei que ser rica, ser gira, saudável e inteligente como eu (eheh) e como vocês (ahah!) também dói. E que desilude. Que cansa e que revolta. Sei que todos temos problemas e, se querem saber, os meus doem-me sempre muito mais do que os dos outros. Sei que às vezes passam-se meses sem graça nenhuma, sem brilho. E que trabalhar cansa, que os pais, irmãos e filhos aborrecem e magoam muitas vezes. Mas sei que já experimentei amar. Já vi o mar, o dia, a noite, já ouvi música, já passei o Natal na quinta, já comi fruta incrivelmente boa, tive amigos, apaixonei-me, vi filmes maravilhosos, já amei a Deus e sei, espero (tenho esperança!) que tudo volte a acontecer mais vezes. É incrível mas eu vejo a luz do dia todos os dias e amo gente todos os dias. Há Natal todos os anos? Vivo todos os dias e quase todos os dias são só mais um. Mas no meio deles há imensas oportunidades de eternidade ? digo eu que já experimentei. Eu vivo para momentos desses. Como vocês, certamente. Como toda a gente. Não é de certeza para o carro, para a casa, para a passerelle do sucesso nem para a reforma que vivemos. E os pretos? E os judeus? Também, calculo. Vivem para amar ou, pelo menos, para momentos em que sentem melhor ou mais o amor. Penso que os que deviam nascer e acabam por não nascer também era para isso que viveriam. Para marcar golos no campeonato inter-orfanatos e para se apaixonarem adolescentemente pelo giraço que tem um pequeno problema com as drogas. Quem sou eu para censurá-los? Vou matá-los? Ou permitir que o façam? Vou deixar que todo o desenvolvimento científico, que a riqueza de um país, que a luta pelos direitos do Homem me adormeçam, me insensibilizem a tal ponto que eu me torne na filha do senhor esclavagista que até é boazinha ou no soldado nazi que resolveu não matar aquele judeu? Certamente que a filha do esclavagista e o soldado judeu eram pessoas do seu tempo e que foram bons e “mereceram” nascer, que foram bons na medida em que a realidade à sua volta e o seu entendimento da mesma lho permitiram. E se eu olhar para o relógio vejo que são 6:45 e que ainda não tomei banho nem me vesti e que já não me vou maquilhar e, portanto, não vai ser hoje que vou sacar o engenheiro jeitoso na festa. E, no meio desta realidade e do meu entendimento sobre ela, sei que se ligar a televisão vejo o triste noticiário e a seguir a divertida telenovela e que me esqueço de tudo e nem sequer vou querer passar esta carta a computador para vos enviar por email. Sei que o “choque de realidade” é poderoso e quase nos mata a todos o gosto de viver. Mas é porque gosto de viver que vos escrevo. É porque amo o mundo, os que vão nascer, os que por cá andam e a vocês muito concretamente. Por isso, é que vou votar não à legalização do aborto ou à pergunta qualquer que ela seja no dia do referendo. E é por essa mesma razão que eu acho que eu, vocês, os que por cá andam e os que hão-de nascer devemos todos trabalhar mais no “voluntariado” e nos “orfanatos” e na política, nas perfumarias, nos bancos, nas escolas e nos meios de comunicação, de forma a que todos vivam melhor. Sou hipócrita, sim? mas é porque faço apenas um milésimo do que nasci para fazer. Amo pouco; às vezes, o choque de realidade, os noticiários, a “saúde pública”, o trabalho, a falta de dinheiro ou o medo que ele falte, me fazem esquecer que uma viagem para Esposende ou um café com a família podem fazer com que valha a pena nascer.
Rita
Bem, afinal não acabei. Estou no Centro fármaco a fazer a hora de jantar. São 7:30. Vou chegar atrasada. (Meu Deus, como sou uma sacrificada pelos pobrezinhos!)
Eu sei que há óptimos argumentos para o sim. O melhor é o de “vai continuar a fazer-se abortos, só que em situações precárias”. Em primeiro lugar, para todos os argumentos do sim, há contra-argumentos do não, claro e vice-versa. Em segundo lugar, o que eu acho que é que “males” haverá sempre. O problema é que a coisa é muito mais profunda que as condições precárias dos abortos ou do julgamento das mães. A questão é o que leva as mulheres a abortar. A pobreza, a vergonha pública, o medo dos pais,? Eu acho que nós contribuímos com o facto de sermos ricos e não distribuirmos, com o facto de sermos giros, termos estilo, sermos inteligentes e termos sucesso (sim, eu também sou assim), contribuímos com as nossas opiniões, estilos de vida, comportamento e omissões para que as “mães solteiras” Tenham vergonha de o ser, para a ambição dos pobres em serem ricos e em querem dar aos filhos aquilo que eles não tiveram? Por isso é que eu acho que o trabalho é muito mais extenso do que só votar não. O trabalho que temos de fazer é dar condições aos outros, não julgarmos, o de definir as nossas prioridades e passá-las aos outros, é o de trabalhar para o Reino de Deus (lamento o incómodo da expressão). Reino de Deus é o sítio (este) em que as pessoas têm condições para ver mais fins-de-tarde, reparar melhor nas músicas e amar de forma mais pura. É o sitio em que todos são mais santos, mais Schindler (da “Llista de Schindler”), mais Luther King e menos “oh pai!, dá só três chicotadas; não é preciso serem dez”.
Beijos e beijos, Rita
PS : Espero não ter estragado o gosto por Aretha Franklin.
3 comentarios:
Javier,
Un video poderoso. La verdad es que los niños imitan todo lo que hacen los otros, asi que es mejor que imitan los buenos ejemplos do que los malos.
Besos
hola,
La gente no se da cuenta que los niños, más que oir, miran lo que estamos haciendo.
És importante que además de lo que les enseñamos cuando hablamos con ellos, lo confirmemos con nuestros actos.
Se dan cuenta que cuando hablamos de alguién que admirabamos, siempre hablamos de lo que hacián, de como erán un ejemplo y no de lo que hablaron.
Saludos
Acho que isto merece divulgaçäo, por isso o proponho a publicaçäo no vosso blog. Obrigada! Marta aci
Música interessante, legendada em português:
http://www.youtube.com/watch?v=5foecye1o00&mode=related&search
Um correio que a minha irmä escreveu aos meus primos depois de uma conversa de café sobre o referendo do aborto (todos a favor menos ela).
Queridos primos,
Não sei como hei-de dizer tudo o que quero dizer-vos, mas cá vai a minha fraca tentativa.
São 6:07 da tarde de Sábado e eu acabei de chegar a Esposende, onde vim tomar banho e trocar de roupa para ir à festa de uma minha amiga. Ainda queria passar pela Eros para me maquilhar e para escolher uma prenda e depois às 7:00 convém que vá fazer a hora de jantar da minha empregada da parafarmácia. O meu jantar é às 8:30.
Digo isto para que vocês saibam que me pesa imenso o factor “realidade”.
Portanto, não estou a viver um momento filosófico, nem romântico, nem sentimentalista.
No entanto, à vinda para Esposende, vim a chorar como uma Madalena arrependida. Convém lembrar que eu nunca choro. E que também não estou com disposição diferente daquela com que me deixaram há pouco. Estou como vocês me viram, ou seja, bem.
Mas meti-me no carro e pus o CD da Aretha Franklin e ao ver o lindo fim de tarde que estava desatei num choro compulsivo.
Porquê? Por todos os amantes da Natureza, por todos os rapazes que têm um sorriso lindo, por todas as mulheres que se apaixonam e vivem momentos maravilhosos alguma vez na vida, mas que não chegaram a nascer e que, portanto, não chegaram a ver fins de tarde bonitos, nem a rir-se com os amigos, nem se sentiram transportados para o céu quando se apaixonaram.
Iam ser pobres, se tivessem nascido?
Os pobres, os miúdos dos orfanatos não se apaixonam nem riem e não gostam de apanhar sol?
Lembram-se daquela cena do filme “A Vida é Bela” (sim, porque a Vida É Bela!) em que os convidados do casamento se indignam por causa da dificuldade de cálculo exigida a crianças alemãs de poucos anos em contarem ?Quantos judeus sobram de um grupo de 7 se matarmos 3?? É de rir, é de chorar. A pobreza nesta discussão é a parte acessória, assim como a dificuldade aritmética.
Ouvir Aretha Franklin? não sei, lembrei-me dos pretos (dos negros, que é mais poético) e das suas lutas pela liberdade.
Se eu vivesse nessa altura, do fascismo ou da escravatura, imagino-me sempre a ser rica, a ser da parte dos “maus”, mas “boazinha”, tipo, ía olhar para os pretos e para os judeus e ver que “oh pá!, eles até são seres
humanos!” e que ía ter imensa pena e que não os matava.
Mas eu não quero ficar do lado errado da História. Eu queria ser dos que lutam pelos direitos dos homens, eu queria ser grandiosa. Não pelos pretos, não pelos judeus. Por mim! Queria ser dos que lutam pelos direitos dos homens porque são essas as pessoas que têm as cordas do coração mais afinadas, tão esticadas que até doem.
Não queria ficar do lado dos que mais ou menos acabam por não fazer mal nenhum.
Hoje ao vir para Esposende, ao ver o fim da tarde (não o pôr-do-sol que é piroso) e ao ouvir a preta a cantar um “soul so chic, so cool”, comovi-me.
Chorei pelos miúdos que não nasceram, mas muito mais pelos que nasceram, mas ficaram zombies, mornos.
Eu sei que os miúdos dos orfanatos são problemáticos, sei que sofrem horrivelmente, que são revoltados, que a pobreza e a solidão dói mais do que eu posso imaginar. Mas também sei que ser rica, ser gira, saudável e
inteligente como eu (eheh) e como vocês (ahah!) também dói. E que desilude. Que cansa e que revolta. Sei que todos temos problemas e, se querem saber, os meus doem-me sempre muito mais do que os dos outros. Sei que às vezes passam-se meses sem graça nenhuma, sem brilho. E que trabalhar cansa, que os pais, irmãos e filhos aborrecem e magoam muitas vezes.
Mas sei que já experimentei amar. Já vi o mar, o dia, a noite, já ouvi música, já passei o Natal na quinta, já comi fruta incrivelmente boa, tive amigos, apaixonei-me, vi filmes maravilhosos, já amei a Deus e sei, espero
(tenho esperança!) que tudo volte a acontecer mais vezes. É incrível mas eu vejo a luz do dia todos os dias e amo gente todos os dias. Há Natal todos os anos?
Vivo todos os dias e quase todos os dias são só mais um. Mas no meio deles há imensas oportunidades de eternidade ? digo eu que já experimentei.
Eu vivo para momentos desses. Como vocês, certamente. Como toda a gente. Não é de certeza para o carro, para a casa, para a passerelle do sucesso nem para a reforma que vivemos.
E os pretos? E os judeus? Também, calculo. Vivem para amar ou, pelo menos, para momentos em que sentem melhor ou mais o amor. Penso que os que deviam nascer e acabam por não nascer também era para isso que viveriam. Para marcar golos no campeonato inter-orfanatos e para se apaixonarem adolescentemente pelo giraço que tem um pequeno problema com as drogas. Quem sou eu para censurá-los?
Vou matá-los? Ou permitir que o façam?
Vou deixar que todo o desenvolvimento científico, que a riqueza de um país, que a luta pelos direitos do Homem me adormeçam, me insensibilizem a tal ponto que eu me torne na filha do senhor esclavagista que até é boazinha ou no soldado nazi que resolveu não matar aquele judeu?
Certamente que a filha do esclavagista e o soldado judeu eram pessoas do seu tempo e que foram bons e “mereceram” nascer, que foram bons na medida em que a realidade à sua volta e o seu entendimento da mesma lho permitiram.
E se eu olhar para o relógio vejo que são 6:45 e que ainda não tomei banho nem me vesti e que já não me vou maquilhar e, portanto, não vai ser hoje que vou sacar o engenheiro jeitoso na festa. E, no meio desta realidade e do meu entendimento sobre ela, sei que se ligar a televisão vejo o triste noticiário e a seguir a divertida telenovela e que me esqueço de tudo e nem sequer vou querer passar esta carta a computador para vos enviar por email.
Sei que o “choque de realidade” é poderoso e quase nos mata a todos o gosto de viver. Mas é porque gosto de viver que vos escrevo. É porque amo o mundo, os que vão nascer, os que por cá andam e a vocês muito concretamente.
Por isso, é que vou votar não à legalização do aborto ou à pergunta qualquer que ela seja no dia do referendo.
E é por essa mesma razão que eu acho que eu, vocês, os que por cá andam e os que hão-de nascer devemos todos trabalhar mais no “voluntariado” e nos “orfanatos” e na política, nas perfumarias, nos bancos, nas escolas e nos meios de comunicação, de forma a que todos vivam melhor.
Sou hipócrita, sim? mas é porque faço apenas um milésimo do que nasci para fazer. Amo pouco; às vezes, o choque de realidade, os noticiários, a “saúde pública”, o trabalho, a falta de dinheiro ou o medo que ele falte,
me fazem esquecer que uma viagem para Esposende ou um café com a família podem fazer com que valha a pena nascer.
Rita
Bem, afinal não acabei.
Estou no Centro fármaco a fazer a hora de jantar. São 7:30. Vou chegar atrasada. (Meu Deus, como sou uma sacrificada pelos pobrezinhos!)
Eu sei que há óptimos argumentos para o sim. O melhor é o de “vai continuar a fazer-se abortos, só que em situações precárias”.
Em primeiro lugar, para todos os argumentos do sim, há contra-argumentos do não, claro e vice-versa.
Em segundo lugar, o que eu acho que é que “males” haverá sempre. O problema é que a coisa é muito mais profunda que as condições precárias dos abortos ou do julgamento das mães.
A questão é o que leva as mulheres a abortar. A pobreza, a vergonha pública, o medo dos pais,?
Eu acho que nós contribuímos com o facto de sermos ricos e não distribuirmos, com o facto de sermos giros, termos estilo, sermos inteligentes e termos sucesso (sim, eu também sou assim), contribuímos com as nossas opiniões, estilos de vida, comportamento e omissões para que as “mães solteiras” Tenham vergonha de o ser, para a ambição dos pobres em serem ricos e em querem dar aos filhos aquilo que eles não tiveram?
Por isso é que eu acho que o trabalho é muito mais extenso do que só votar não. O trabalho que temos de fazer é dar condições aos outros, não julgarmos, o de definir as nossas prioridades e passá-las aos outros, é o de
trabalhar para o Reino de Deus (lamento o incómodo da expressão). Reino de Deus é o sítio (este) em que as pessoas têm condições para ver mais fins-de-tarde, reparar melhor nas músicas e amar de forma mais pura. É o
sitio em que todos são mais santos, mais Schindler (da “Llista de Schindler”), mais Luther King e menos “oh pai!, dá só três chicotadas; não é preciso serem dez”.
Beijos e beijos,
Rita
PS : Espero não ter estragado o gosto por Aretha Franklin.
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